é a penúltima linha da minha morada, enquanto aprendo matemática no MIT.

segunda-feira, março 05, 2007

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ti tó

O titó foi meu quase avô.
Quando queríamos saber alguma coisa acerca de alguém lá da terra, ele sabia. Contava a história, acrescentava pormenores de personagens secundários, primos e primas, "sim, sim, esta era nossa parenta", é inevitável que esqueça a inflexão da voz quando ele dizia parenta, mas por agora consigo imaginar, a mão enrugada no ar, a dar ênfase à parentidade. Sentava-se no sofá e adormecia, cabeceava, ressonava até, mas depois de chamarmos duas ou três vezes dizia-nos que não, não estava a dormir, estava só a descansar os olhos. Nunca estava a dormir. É o hábito dos velhos, nunca dormir, só descansar os olhos. Às vezes ficava triste, cansado, fraco, respondia com "se lá chegar, se lá chegar" a tudo o que fizesse referência a um tempo futuro. Depois melhorava, lembro-me da voz em meio riso, a dizer "então, pois, é assim". A seguir ao almoço íamos todos juntos ao café, devagar, ao ritmo das muletas. Tremia-lhe a mão a segurar na chávena e gostava de chocolates. Todos os natais recebia chocolates. Eu também. E às refeições, às vezes eu contava-lhe as gotas de remédio, um comprimido destes e um dos outros, à frente do prato, estão aqui titó, estão aqui ao pé do copo, e ele dizia, eu sei, eu sei, eu vejo. E nós fingíamos que sim, que via, tal como fingíamos que só descansava os olhos, em vez de dormir sentado no sofá. Nos dias de sol sentava-se lá fora, ao sol. Como os gatos. A bóina, sempre a bóina. Lembro-me dele sempre velho, as muletas, a bóina, o cabelo muito branco, os óculos grossos e verdes. Ficava contente por beber um copo de geropiga a acompanhar as castanhas assadas à lareira. Não podia, não devia, como todos os velhos, mas fazia-lhe mais bem que mal, a alegria. Não casou, não teve filhos. Mas teve um sobrinho e uma sobrinha, e três sobrinhas netas. E um sobrinho bisneto, o G.. Vi-o um dia com os olhos molhados, o G. a tocar-lhe na mão, praticamente um bisneto, ali, uma mão de bebé na mão enrugada dele, e ele quase a chorar, de comovido. De vez em quando eu mandava-lhe postais de cá, lia-os a minha tia para ele. Gostava de beber chá à noite, como nós todos, deve ser de família, mas gostava das filhoses mais moles, achava as nossas muito duras. Sabia a resposta às adivinhas obscuras do meu tio, com palavras antigas. Levantava a mão enrugada, acenava com a mão enrugada e dizia "é sim, senhora, é isso mesmo". Hei-de esquecer-me do tom exacto, mas quero lembrar-me, a voz, a voz.

ti tó

1 comentário:

Margot disse...

Eu tive um avô assim que viveu 89 anos.
Também usava um boné, também tinhas as maõs rugosas, também dormia muitas sestas embora as negasse com a mesma frase "estava só a descansar os olhos". E dizia muitas vezes "de maneira que é assim." Há coisas que ficam para sempre em nós e os avós, emprestados ou não, são uma delas.
Abraço

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