é a penúltima linha da minha morada, enquanto aprendo matemática no MIT.

terça-feira, dezembro 27, 2005

2 de janeiro de 2003

(escrito na data acima, num email para um amigo que nunca vi)

No natal, fico vários dias no fratel (a terrinha do meu pai) e, ao contrário do que aconteceria em outras ocasiões, não me chateio muito com isso. Vamos cortar um pinheirinho e trazemo-lo para casa. Depois passo umas horas a enfeitá-lo, a decidir como é que uns enfeites "todos diferentes todos iguais" (mais diferentes que iguais) muito velhos e pirosos hão-de fazer aquele pinheiro transformar-se numa árvore de natal. O resultado é, invariavelmente, magnífico!
Depois (a ordem varia de ano para ano) a família toda (que neste caso é o agregado familiar da minha tia e o meu agregado familiar) embarca na hercúlea tarefa de fazer as melhores filhoses do mundo. A minha tia é que sabe os segredos, os ingredientes, como é que se benze às beliscadelas a massa para ela crescer, e essas coisas importantes. Passamos horas à lareira, a estender e a fritar a massa, e a conversar. Com o fim da massa, eu e as minhas primas fazemos um menino (com pilinha), uma menina (com totós e maminhas) e um cão, e como somos três primas no fim fica um para cada. Depois é preciso passar as filhoses pela calda. Se fôr preciso, janta-se antes para ganhar forças e porque já é tarde. Depois são mais umas horas à lareira e à conversa, à roda do gigantesco alguidar das filhoses. Depois há filhoses para toda a gente: para levar para o meu outro natal, na guarda, para oferecer à minha afilhada, para a mãe do meu namorado, para o meu pai levar para o emprego para comerem todos juntos, para dar aos vizinhos e aos tios de lisboa, para ainda haver umas quantas no alguidar e se comerem ao pequeno almoço. Outras noites, no fratel, vêm primos afastados sentar-se connosco à lareira e beber chá, como nos livros de estórias. Almoça-se em casa da minha tia e janta-se na nossa, todos juntos, que suja menos loiça e dá mais conversa. Leva-se as prendas a casa de quem as vai abrir, de minha casa para casa da minha tia (lado a lado, separadas só por um bocado de vinha e os quintais), da dela para a nossa, para a minha afilhada e a irmãzita, para a vizinha e a comadre, para a maria antónia e o manel, que voltaram da alemanha para se reformarem em portugal, restos extra-especiais para o cisco e para a sky, um um cão velho, simpático e inteligente, a outra uma cadela grande, que salta como se viesse do circo e ainda não conhece o meu cheiro.

Dia 24, cozinhamos a tarde toda, as farófias e o bacalhau. As minhas primas, tio e tia vão para casa do outro lado da família deles e nós ficamos os três e o titó, um tio velhote do meu pai, que tem óculos verdes escuros, nunca casou, toma muitos comprimidos e conta muitas coisas de quando era novo. Temos a nossa consoada, e abrimos as prendas logo a seguir, que para alguns velhotes, como para as crianças muito pequenas, a meia-noite é muito tarde, muito depois de irem dormir. Pomos um tronco dos bons na lareira, abrimos as prendas, deitamos os papéis para o lume, ficam as chamas azuis e verdes e pomos as prendas em cima da mesa.
Saímos para a missa do galo. Não é à meia noite, o mesmo padre dá várias missas do galo, a nossa é às 10 e meia. A minha afilhada canta e é como ir vê-la actuar num palco. Só não posso bater palmas no fim, ou escandalizava a aldeia em peso. Lá fora, no largo, há um monte enorme de lenha roubada, troncos grossos, arde a noite inteira. É bonito, ficamos ali a olhar para o fogo, e as pessoas cumprimentam-se, perguntam-se "que é feito?", está quentinho mesmo no meio da rua. Voltamos para casa. Entretanto chegam as minhas primas e os tios, vou para casa deles, ver-lhes o natal. Abrem as prendas, riem-se, muito mais que nós, duas irmãs quase da mesma idade fazem muito mais risota que eu sozinha, mesmo sendo maiores... Fazem chá e café e bebemos. Depois dormimos. O cobertor da minha cama é eléctrico. Quando entro na cama está morna, leio um livro e desligo o cobertor, desligo a luz e acordo dia de natal.

Dia 25 viajamos. Vamos para a guarda, ter com o outro lado da família, os irmãos da minha mãe, o meu avô, uma resma de primos. Chegamos a casa da tia L., a tia mais mãe que irmã de todos os irmãos. Chegam outros tios e tias, primos e primas. Enchemos a casa. Eu não os vejo há meses, mas estamos na mesma. Para almoçar, sentam-se os tios na sala e os primos (e a tia cristina, a mais nova dos 9 irmãos, mais prima que tia) na cozinha, ficamos apertados, uns e outros, é de sermos tantos. Uma prima mais velha pega na mais nova ao colo, convence-a a comer tudo. Atacamos os doces antes de os levar para a sala, chegam lá já a meio. Lava-se a loiça, arruma-se tudo, põe-se a conversa em dia. Juntamo-nos todos na sala, não há assentos que cheguem para todos. A prima mais pequena distribui as prendas, grita bem alto os nomes que a irmã, segunda mais nova, lhe diz ao ler nos embrulhos. Sabe melhor a algazarra que as prendas. No fim, o meu avô quase que brilha, tira as notas do bolso e dá uma a cada primo, do mais novo para o mais velho. Obrigada avô, obrigado avô. Vamos tomar café. Enchemos o sítio, a empregada espanta-se, são uns quinze ou vinte cafés, mais umas pastilhas e chupa-chupas. É natal.
Depois começamos a dispersar. Despedimo-nos. Os meus pais voltam a lisboa, trabalham dia 26. Eu fico. À noite vamos ao cinema, também já é tradição. Este ano o filme foi especialmente mau, mas não faz mal, há pipocas e o cinema é quase só para nós. À noite durmo com uma prima, conversamos baixinho antes de apagar a luz, bebemos leite com chocolate e comemos bolo.

De manhã está frio, é a guarda, está mesmo frio. Visto-me, tomo o pequeno almoço, dois dedos de conversa com a minha tia, que vai sair para trabalhar. O meu avô chega para me levar à estação. Mochila, um saco com as melhores filhoses do mundo, casaco e cachecol. Compro o bilhete, dou uns quatro ou cinco abraços ao meu avô. É tão bom este avô. Careca, redondo, com bochechas encarnadas, muito risonho. Adeus, avô. Comboio. Todas as estações e apeadeiros. Acaba-se o meu natal de sempre. Sigo para coimbra, o J. está à minha espera. Dois dias e uma noite com ele. Parece mais tempo, mas na verdade chego dia 26 e dia 27 à noite já estou em lisboa. Estendo a toalha de plástico na mesa da sala e espalho o dossier, livros, papéis, apontamentos, exames, testes, um calendário. Vai começar a época de exames.

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